O fim de semana foi mais uma vez para descansar.

Aproveitamos e fomos até ao sul da ilha. Em cada curva do caminho o verde da floresta tropical fica-nos gravado na memória, desde os picos das montanhas que descem vestidas de verde até ao azul do mar. Ficamos primeiro pela Roça S. João dos Angolares que pertence ao conhecido chefe de cozinha João Carlos Silva, protagonista do programa de culinária “Na roça com os tacho”, e que é um grande embaixador  da cultura santomense. Depois seguimos até mesmo ao sul da ilha e fizemos a travessia até ao ilhéu das Rolas.

 

Há duas formas de chegar até à ilha, ou através do barco do hotel Pestana onde seguem uma boa parte dos turistas ou então, deixamo-nos levar pelo convite de um São Tomense que normalmente abordam os turistas ao chegarem ao sul da ilha e desta forma vão ganhando o seu ganha pão.

Porto Alegre é uma das zonas mais pobres de S. Tomé, é uma zona piscatória, e onde termina a estrada que vem da Capital, daqui para a frente todas as zonas envolventes são de estrada de terra batida.

É também verdade que é nesta zona onde se encontram as praias mais paradisíacas e onde numa noite de Lua cheia tivemos a sorte de ver uma tartaruga vir à praia desovar os seus cerca de duzentos ovos.

Só por curiosidade, em S.Tomé e Príncipe há atualmente um programa de proteção de tartarugas marinhas – Programa Tatô, numa parceira entre a Marapa ( uma ONG  nacional) e a ATM – Associação para a protecção, pesquisa e conservação das Tartarugas Marinhas nos países lusófonos. As tartarugas eram capturadas como meio de subsistência, a sua carne e os ovos eram vendidos nos mercados. Por isso atualmente existem vigilantes nas praias que controlam e protegem as ninhadas e as tartarugas protegendo-as também de outros predadores além dos humanos.

 

Para fazermos a travessia para o Ilhéu fomos então com um jovem que nos convenceu a ir com ele. A viagem é feita num barco de pescador que entre eles fazem o próprio negócio para todos ficarem a ganhar. Durante a conversa o senhor apercebe-se que sou médica, e assim ao nosso regresso traz-me o seu filho para que eu o veja.

 

A imagem deste menino ficou-me gravada, o pai diz que tem dezoito meses, já foi várias vezes ao hospital na capital na esperança de que lhe expliquem alguma coisa, mas ninguém lhe diz o que se passa com o seu bebe, o que deve fazer que cuidados ter ou o que se passou. O pai não dá muitas explicações, na verdade nem percebe bem o que se passa. Pela aparência provavelmente alguma complicação durante o parto que terá provocado paralisia cerebral ou patologia  congénita do foro cerebral, o que é certo é que esta criança não está a ter um adequado desenvolvimento: não anda, tem muita dificuldade na alimentação, tem dificuldade respiratória… o pai diz-me que ninguém segue o bebe, não sabe o que tem , como proceder, como alimentar…estão perdidos. Não é possível imaginar o tamanho do sofrimento de uma situação destas num país com tantas dificuldades de acesso aos cuidados de saúde.

 

Voltamos ao norte da ilha e aquele menino não me saiu da cabeça…contactei nessa noite o Instituto Marquês de Valle Flor uma ONG para o desenvolvimento que actua em S. Tomé, que aconselhou o encaminhamento para os pediatras portugueses através da telemedicina. Espero conseguir um pequeno apoio que ajude estes pais, pelo menos a dar algum alento.

 

Durante a última semana de trabalho de manhã ficávamos pela urgência, demos apoio na consulta de saúde infantil, sendo esta normalmente feita pelos enfermeiros, e que nos pediam para avaliar as crianças doentes.

Da parte da tarde demos apoio no lar de idosos e a todos os doentes que surgissem no gabinete a pedir apoio… A verdade  é que as pessoas começavam a saber que estávamos por ali e iam aparecendo para as tratarmos com o pouco que tínhamos à mão. Preferiam isso a ir ao hospital, que diga-se não tinha mais do que nós ali.

 

No último dia que estivemos ao serviço, a Irmã Lúcia pediu-nos para irmos mais cedo que havia uma surpresa.Em Neves a Irmã recebeu um voluntário, veio uma semana a S. Tomé e Príncipe para trazer um pouco da cultura Portuguesa… traz o Teatro de Dom Rodrigo para mostrar nas escolas. O teatro de Dom Roberto é um teatro tradicional existente em Portugal desde o séc. XIII, e que se manteve até meados do séc. XX, eram pequenas peças, humorísticas feitas com marionetas de luva que normalmente relatavam situações do povo. Foi agora recuperado pela companhia S.A. Marionetas que pretende levar esta tradição a todos os países de cultura portuguesa. Reunimos assim vários grupos d crianças no átrio da escolinha para assistirem à peça de teatro.

E não imaginam a sensação de ouvir todas aquelas crianças em uníssono às gargalhadas.

Foi um momento único e a certeza de que guardo com carinho aquela alegria que demonstram  com tão pouco com toda a felicidade do mundo estampada nos rostos. Foi uma ótima forma de me despedir da escolinha.

 

O alarme toca…. acordo confusa…muitos cobertores em cima… já estou em Portugal.

O choque de realidades é perturbador!

Há imagens, sons, cheiros, momentos, risos e choros que não esqueço, que não quero esquecer!! Há coisas que não podemos nunca esquecer!

Há realidades muito diferentes, oportunidades que não chegam a todos. Devemos agradecer todos os dias o que temos, e temos de ser todos os dias MAIS para conseguir chegar a quem tem menos.

Fica o bichinho cá dentro, espero ter deixado muito de mim, espero ter sido uma pequenina gota no oceano, venho com o coração a transbordar, com mais do que o que levei… Sei que trazemos sempre mais quando vamos dar, regressamos com mais do que aquilo que podemos fazer pelos outros…

Mas sei também: eu quero voltar…aqui ou em outra qualquer parte do Mundo… porque há tanto para fazer, tantos sorrisos para arrancar, tantos cuidados a dar, e esperança para levar!

Quero acreditar que podemos ter um Mundo mais justo!

 

 

Texto e imagens de Estela Loureiro

Médica voluntária em São Tomé e Príncipe

 

Esteve, durante muito tempo, na Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados da Mealhada