Aqui o dia começa cedo. Um novo amigo…de quem a história de vida não é nada fácil e que vamos arrancando aos bocadinhos, por entre um olhar triste e envergonhado, alternando com um sorriso aberto e simpatia sem medida, de quem vai trazendo no seu jeito atrapalhado, a sua ilha para nos dar a conhecer … levanta-se as 4 horas da manhã, vai à escola numa carrinha possivelmente de vinte lugares, mas onde seguramente seguem o dobro ou o triplo das pessoas encavalitadas umas sobre as outras.

Vai à escola na Capital (eles chamam assim à cidade de S. Tomé). São vinte e sete quilómetros de estrada que demoram cerca de uma hora a fazer…numa estrada cheia de buracos, ramos, pedregulhos que resvalam das encostas… sem sinais de trânsito, marcações de estrada ou  semáforos e em que, possivelmente, a única intervenção foi feita na época colonial. Vai, provavelmente, muitas vezes, sem o mata bicho (o pequeno almoço). Volta da escola pelas 13 horas, vai trabalhar na carpintaria para ajudar com algum dinheiro em casa. Às 19 são horas de voltar a dormir.

O nosso dia começa às 7 horas; somos bem mais privilegiados, mas já depois de uma noite atribulada de cães a ladrar, galos que começam a cantarolar logo pelas 4 horas, os vizinhos que acordam às 5 horas e as obras às 5h 30m.24197443_2414317958792806_783454402_o

Dirijo-me ao hospital…o dia começa com a passagem de turno… tudo é descrito ao pormenor: o número de doentes atendidos na urgência, os diagnósticos, número de partos, e inclusive o número de quilómetros feito com o carro de serviço, a gasolina gasta, o número de medicamentos dados e os gastos feitos com medicação, quem pagou ou não, o número de pensos, o número de panos deixados nas enfermarias pelas auxiliares, o número de tiras de glicemia e se foram ou não pagas…

Em seguida a visita médica às enfermarias. Há quatro enfermarias: homens, mulheres, crianças e a maternidade. Cada enfermaria um quarto único com duas filas de camas.

Neste momento, existe um epidemia de celulite necrotizante em S. Tomé, que é uma infecção de pele grave e que ainda não foi conhecida a causa, pelo que a maior parte dos internamentos de adultos são por esta situação.

Olho para os quartos, duas e três vezes… não há lençóis em todas as camas, as condições são difíceis de descrever, as camas são já bastante antigas, colchões gastos pelo tempo… cheios de histórias para contar, paredes vazias e sujas, os doentes e suas famílias, as vozes e cheiros de várias gerações…

O colega conta-me: “Isto agora não é nada, na altura da malária tínhamos três ou quatro na mesma cama, alguns pelo chão… chegavam com febre já nem fazíamos o teste, era para tratar… agora se houver um caso suspeito faz-se sempre toda a investigação”.

Chega um doente e atira-se de imediato para a cama: é um jardineiro do hospital que tem epilepsia e fez uma convulsão… vai só descansar um pouquinho… não tomou a medicação, não tem tido dinheiro para a comprar.

 

Na enfermaria de crianças conheço duas mães… estão internados os seus bebés por desnutrição. Percebo rapidamente que as noções de maternidade estão muito longe do investimento feito no nosso país na área da saúde materna e infantil, dos planos de vigilância que temos e da forma atenta como as nossas enfermeiras e médicos cuidam, investem e vigiam as crianças.

Após a visita, seguem-se as consultas. Neste hospital não há computadores, nem um… diga-se, em boa verdade, que isso também diminui, em muito, os níveis de stress a que estamos todos os dias sujeitos por causa destas máquinas, mas uma coisa é certa: já não sabemos viver sem eles.

Os “ processos” são folhas de papel organizadas pelo mês de nascimento dos doentes, em que se escreve o motivo de consulta e o plano feito… muitas perdem-se pelo caminho…

A consulta é marcada no próprio dia, não há consulta programada, não há vigilâncias como em Portugal, normalmente são por doença aguda no dia, ou porque o médico pediu para vir reavaliar alguma situação.

No entanto há algumas vigilâncias feitas, as enfermeiras vigiam as crianças com pesagens regulares, o programa de vacinação, vigilância das grávidas, e uma leve aposta na saúde reprodutiva. Atualmente está em curso um projeto de combate à desnutrição infantil que tem conseguido chegar a quase todas as crianças. Há inclusive um dia por semana em que uma equipa vai ao terreno  tentar vacinar as crianças e assim identificar junto das comunidades crianças em risco.

 

Logo no primeiro dia pediram-me para colaborar na urgência e na ala da pediatria…as crianças são muitas e quase todo o trabalho é feito pelos enfermeiros. Na área da pediatria são vigiados os pesos e feita a vacinação… se for identificada alguma criança doente, então é pedido apoio médico. Na urgência, a equipa presente é de enfermagem, os médicos só são chamados  em situações necessárias que não possam ser resolvidas pelos enfermeiros, por isso eu fico-me por aqui, onde posso ser mais útil.

24281946_2414279002130035_79259446_oNo serviço de urgência vão entrando para a sala os doentes sem qualquer critério, não há inscrições, entram sem ordem pela sala dentro e queixam-se a quem estiver à frente. Nesta mesma sala bem pequena há: cinco macas para doentes em observação, uma maca para fazer pensos, uma maca para bebés e uma mesa onde está o livro das ocorrências e aqui, sim, é feito o registo do nome e diagnóstico do doente.

Ainda na mesma e única sala de serviço de urgência fazem-se pelas manhã os pensos de quem aparece, não há nada programado, as pessoas vão aguardando a medida que vão chegando. Primeiro, passam pela “secretaria” para pagar e só depois pode ser feito.

Portanto, pode-se imaginar que numa única sala a passar-se tudo ao mesmo tempo é difícil haver muita ordem.

No hospital, há ainda um pequeno laboratório, faz-se muito poucas análises mas já serve para ajudar o clínico no seu diagnóstico.

Quando cá cheguei disseram-me “aqui só precisas de muito pouco de todo o conhecimento que tens”.

Há, ainda, a farmácia…onde os doentes podem comprar a medicação… toda a medicação injetável ou pomadas feitas, quer na urgência, quer no internamento, tem de ser paga; só é administrada se o doente for comprar… constato, assim…, que a maior parte das pessoas, não tendo dinheiro, não faz a medicação.

A maior parte dos comprimidos não são pagos, por isso, por vezes, acaba-se por tentar resolver a situação com eles… os comprimidos de adultos servem igualmente para as crianças, tentando adaptar-se a dose da melhor forma que se conseguir.

 

Confronto-me com uma realidade totalmente diferente daquela em que cresci, em que aprendi, em que trabalho… nem o nosso pior local, em Portugal, a nível de cuidados de saúde é tão duramente devastador como o que aqui assisti.

Olho para o armário da medicação que tenho disponível na Serviço de Urgência e tento orientar os doentes, mas acredite-se que não é uma tarefa nada fácil: a escassez de recursos é enorme…

Entra uma mãe com a bebé de nove meses: foi mordida por uma cão há três dias e foi feita sutura, mas hoje vem porque a ferida infectou, a perna estava já muito feia, eu quis internar a menina para fazer medicação injetável… não deu, a mãe não tinha dinheiro para comprar… puxo pela cabeça…qual a melhor forma de tratar? A opção mais em conta? Questões que em Portugal não surgem …

Entram muitos doentes na urgência com abcessos para serem drenados, há pouca anestesia para dar por isso só se usa mesmo em último recurso. Há alguns gritos, algum medo na expressão das pessoas, as crianças choram… isto sim, chega a ser perturbador ter três pessoas a agarrar um bebé ou uma criança.

 

Entra uma senhora, a cara envelhecida pela dureza da vida, fala dialeto, não entendo uma palavra do que diz, mostra me a mão toda inchada …um abcesso no dedo…digo lhe que temos de abrir…logo começa o sofrimento daquela mulher, deixa me segurar-lhe a mão, mas quer agarrar-se a mim. Eu mantenho me de pé, enrola se por trás de mim, e à medida que eu tento fazer o meu trabalho com a enfermeira ela grita/canta/ agita-se, dança… e pronuncia palavras que não entendo. É uma imagem que jamais esquecerei na minha cabeça…24271099_2414317945459474_1219046020_o

 

No meio da confusão de três crianças que subitamente se sentiram mal na  escola e que são trazidas em braços pelos auxiliares da escola, mais um senhor com vómitos em observação, entra um senhor muito nervoso a pedir a chave da ambulância porque tem de ir buscar a sua mulher que está grávida e está desmaiada em casa. Fico confusa, mas chamo a enfermeira que lhe dá a chave… eles são o seu próprio 112.

Assim que entra a grávida faz se todo o exame…mas  não consigo ouvir o bebé, nem a mãe senti-lo…não tenho nada aqui para ajudar… consegui pedir para que transferissem a doente para a Capital… 

 

Dá muito que pensar: a escassez de recursos, a escassez de cuidados, o caos por vezes instalado,  as  condições de higiene precárias… mas Sorrisos Enormes e uma disponibilidade total!

 

Texto e imagens de Estela Loureiro

Médica em voluntariado em São Tomé e Príncipe

 

Esteve, durante muito tempo, na Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados da Mealhada